Thriller policial

Trama Digital – Capítulo 3

Sombra mortal

29 de março de 2024

Os dias foram se desenrolando sem grandes surpresas. Poucos amigos marcaram presença on-line e as três horas diárias mais pareciam voar como se fossem 15 minutos, deixando o restante do dia esticado como se durasse eternas 96 horas. No decorrer de um mês, as partidas com César rolaram duas ou três vezes, enquanto com amigos antigos como Rafa e Beto, no máximo, umas quatro partidinhas. Nos demais dias, as partidas on-line eram preenchidas com a presença de usuários desconhecidos, tornando o jogo um ritual repetitivo, mas agora sem nenhuma conversa ativa durante as partidas. O cenário, antes cheio de risadas e trocas de ideias, transformou-se em uma experiência mais solitária, onde o jogo mantinha a mesma dinâmica, mas a interação humana tornava-se cada vez mais escassa.

Anteriormente, durante uma partida acirrada de Fortnite, Teresa conseguia sentir a vivacidade do apartamento através das animadas conversas de seu filho. Mesmo sem compreender as respostas dos amigos de Cris devido ao uso constante de fones de ouvido, as falas entusiasmadas revelavam um ambiente movimentado e cheio de energia. Perguntas como “Cê tá fazendo live como jogo?” ou mandando um “Pra aproveitar o tempo multiuso, né, sô?”. E as estratégicas vinham em alto e bom mineirês, como “Vam’ pular agora atrás da mata” ou “Não atira em mim não, véi! ou o clássico “Nó….!”  ecoavam pelo espaço. O apartamento tornava-se palco de emoções virtuais, onde saltos, alertas e estratégias eram discutidos com entusiasmo.

No entanto, hoje, o cenário é diferente. Um silêncio quase absoluto preenche o ambiente, transformando-o em um refúgio monástico. Seja estudando, jogando videogames ou imerso na leitura de um livro, Cris permanece envolto em seu próprio mundo, sempre acompanhado por seus fiéis fones de ouvido. O silêncio, agora dominante, contrasta com a efervescência virtual que antes preenchia o apartamento, espaço totalmente tomado por esse sossego mineiro.

No máximo, ecoava no ambiente virtual um simples “Levo o lança-chamas e você, o sniper.” A comunicação se resumia a estratégias de jogo, uma ponte frágil entre jogadores que antes compartilhavam risadas, histórias e emoções. O jogo continuava, mas a essência das interações se diluía, transformando-se em meros murmúrios digitais em meio à vastidão do ciberespaço.

Com a mãe em casa, a comunicação se resumia a poucas palavras. Uma vez esgotadas as três horas conectadas e as leituras do dia, Cris encontrava refúgio na sala à noite, enquanto Teresa acompanhava os telejornais. Antes do horário de jantar ou, na maioria das vezes recentes, durante um lanche descompromissado, eles compartilhavam o mesmo espaço, mas cada um imerso em seu mundo. As notícias fluíam pela tela da TV, mas para quem observasse atentamente Cris, as dúvidas surgiriam. Estaria ele absorvendo as notícias ou vagando por terras distantes em seus próprios pensamentos? O silêncio da sala era preenchido pelo zumbido da televisão, mas o verdadeiro diálogo parecia ter se perdido, perdido nas ondas de pensamentos de um jovem que, mesmo presente fisicamente, estava cada vez mais distante.


[Voz da TV]:
— O deputado João de Freitas, foi encontrado morto em seu apartamento, sentado em sua mesa de jantar. A perícia constatou que ele faleceu ontem à noite. Não foram encontrados sinais de arrombamento no seu apartamento. A polícia foi acionada e conduzirá as investigações.

Cris fica estável, como se a televisão estivesse desligada.


[Voz da TV]:
— Estão abertas as inscrições para o Concurso Nacional de Fotografias feitas por drone. As fotos precisam ter sido feitas a, no máximo, um ano atrás. A inscrição é de apenas uma fotografia por candidato. Para as inscrições, enviar a foto para o concurso, os dados do candidato, os dados e uma foto do drone utilizado para a realização da foto. Inscrições no site indicado na tela.

Teresa olhou para Cris, que continuou imóvel. “Meu Deus, nem isso chama sua atenção”, ela pensou.

— Viu isso, Cris? Um concurso de fotografias de drone. Por que você não se inscreve, sai por aí, dá umas voltas, faz uma fotos. Você gosta tanto.

— Pode ser — ele responde.

— Vai pensar nisso?

— Vou pensar.

A resposta foi dada com pouca animosidade. Teresa percebeu que teria que insistir mais para não perder a oportunidade de vê-lo saindo para realizar alguma atividade fora de casa.

No dia seguinte, no intervalo do jornal, nova propaganda do concurso de fotos.

— E então, filho, vai participar do concurso?

— Que concurso, mãe?

— De fotos de drone, que eu te falei…

— Uai! Tô estou sabendo, não.

Teresa se sentiu contaminada pela apatia de Cris e se desligou por um pequeno período. Parecia que o tempo na clínica e o controle rígido do tempo conectado não adiantaram em nada. Pensando bem, não parecia, estava bem claro. O ambiente que deveria trazer mudanças positivas parecia, ao invés disso, intensificar a desconexão e a apatia, afetando não só Cris, mas também quem estava ao seu redor.

Na televisão, nova notícia sobre a morte do deputado.


[Voz da TV]:
— A perícia concluiu que o deputado João de Freitas morreu envenenado à noite enquanto jantava em sua casa. Durante a necropsia, foi encontrada uma substância chamada Cianeto em seu corpo. A polícia continuará as investigações e não descarta nenhuma possibilidade, inclusive a de suicídio.

— Nóóó… É isso o que tanto me preocupa, filho! Essa onda de vícios de Internet, causando depressões, tristezas, criando essa tal realidade paralela, podendo até causar suicídios, fora outras doenças… Já vimos isso outras vezes…— disse Teresa em voz alta, mas ciente que falava sozinha.

Terminado o telejornal, Teresa foi à cozinha assar pães de queijo e passar um café coado. Os costumes mudam um pouco de região para região. Para Teresa, o café mineiro deve ser mais fraco, um pouco mais doce e começar a saciar o paladar já pelo aroma que exala por toda a casa ao ser coado, em um coador de pano, claro. O pão de queijo não pode ficar muito branco, deve abrir uma tonalidade corada com as marcas dos pedacinhos de queijo um pouco mais escuras, como pintas ao seu redor.

Assim que tudo estivesse pronto, Cris sairia da sua inércia para fazer esse lanche noturno. Pelo menos essa certeza ela tinha. Ele era apático mas não era bobo.

Se pudesse transmitir o aroma de um café mineiro coado com a fragrância de um pão de queijo assado dessa forma pelas páginas do livro, acredito que o leitor demoraria umas cinco vezes mais neste capítulo. De toda forma, como se trata de um romance policial, voltemos às preocupações de Teresa.

Cris comeu apenas um pão de queijo, tomou duas xícaras de café, em silêncio, e se recolheu ao seu quarto.

Logo depois, Teresa também foi se deitar. Preocupou-se com o jeito de Cris, cada vez mais calado. Preocupou-se com a notícias do possível suicídio noticiado e conectou os dois assuntos por conta própria: o vício em conectividade levava à depressão que podia levar ao suicídio. Era como se a noite fosse uma sombra da morte a cobrir seus pensamentos nesse momento.

Cris aguardou deitado até não ouvir mais nenhum sinal de que Teresa estivesse acordada. Após certificar-se, colocou seu fone de ouvido e ligou seu videogame. Deitado em sua cama ele teria uma hora direta no jogo que quisesse. Quando fosse bloqueado, dormiria. O tempo de bloqueio de duas horas passaria enquanto ele dormisse.

Trama Digital é uma obra com registro de direitos autorais.

Confira o cronograma e os capítulos disponíveis clicando aqui.

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