Trama Digital – Capítulo 7
Conflitos sociais
06 de junho de 2024
O caos que se instalou na cidade, refletindo a lentidão e os transtornos causados pelas operações na Internet, havia se transformado em uma verdadeira saga. A dependência excessiva da conectividade se mostrava em todos os aspectos da vida cotidiana, desde as transações financeiras até o simples ato de atravessar a rua. Cris percebia os efeitos desse cenário, especialmente no seu mundo de jogos online.
O PIX, método de pagamento eletrônico ágil, tornou-se um processo moroso, obrigando as pessoas a enfrentarem filas intermináveis nos estabelecimentos comerciais. A dependência crescente da conectividade revelou-se de maneira implacável, prejudicando não apenas pagamentos com cartões, mas até mesmo transações em dinheiro, uma vez que os sistemas de venda estavam hospedados em servidores remotos conectados à Internet.
A nuvem, anteriormente vista como um conceito distante e abstrato, agora pairava de forma concreta sobre todos, envolvendo a cidade em uma realidade onde os limites entre o mundo real e virtual se entrelaçavam de maneira inextricável. As primeiras pessoas que imaginaram não serem atingidas pelo problema logo perceberam que, de fato, o mundo moderno era movido pela emaranhada teia da conectividade digital.
O transporte público tornou-se uma experiência morosa, com a lentidão dos sistemas de pagamento eletrônico conectados à Internet, gerando filas intermináveis para entrada nos veículos. Até mesmo chamar um carro de aplicativo tornou-se uma tarefa árdua, demorada, evidenciando a interrupção no fluxo normal das operações online.
A interferência na sincronização dos semáforos e o aumento do tempo de espera nos pontos de ônibus eram sintomas evidentes dessa disrupção digital. A cidade, outrora ágil e dinâmica, agora parecia presa em uma rede digital que lhe sufocava.
As medidas de monitoramento e bloqueio impostas pela Inteligência Artificial do Governo geravam frustração e irritação na população, que se via limitada em suas interações online. Para Cris, essas restrições eram particularmente incômodas, atrapalhando seus jogos e levando seus amigos a desistirem da participação.
Assim, a cidade se via diante de uma encruzilhada, onde as consequências das ações tomadas para solucionar os crimes impactavam diretamente na vida de cada cidadão. O equilíbrio entre a segurança e a liberdade estava sendo testado, enquanto o caos continuava a se desdobrar, misturando os limites entre o mundo digital e o analógico.
A imposição de um bloqueio de 24 horas para usuários envolvidos em conversas ou transações consideradas suspeitas pela Inteligência Artificial do Governo agravou ainda mais a desordem digital na cidade. Essa medida, destinada a investigações, tornou-se uma fonte adicional de frustração e desconforto para a população.
A liberdade de comunicação e a realização de transações pela Internet foram submetidas a um escrutínio constante, com a inteligência artificial do Governo assumindo o papel de árbitro, decidindo quais atividades eram dignas de confiança e quais mereciam uma pausa forçada. A imprevisibilidade dessas interrupções tornou-se um fator de ansiedade, pois qualquer interação online podia levar a um bloqueio temporário.
O desafio diário para os cidadãos tornou-se não apenas navegar pelas filas físicas e digitais, mas também enfrentar uma atmosfera de vigilância constante, onde cada clique, mensagem ou transação podia ser submetido a uma análise minuciosa. A confiança na liberdade digital desmoronou, dando lugar a um sentimento generalizado de apreensão em relação à própria expressão e interação online. A cidade, outrora vibrante e conectada, encontrava-se agora enredada em uma teia de restrições digitais, desafiando os limites da paciência e adaptabilidade dos seus habitantes.
Para Cris, tudo isso era pior porque atrapalhava mais ainda os jogos. A Epic Games diminuiu o número de participantes necessários a uma partida de Fortnite de 100 para 50. Ainda assim era demorado porque todas as identidades dos jogadores eram verificadas antes das partidas para registrar os relacionamentos. A frustração era acentuada pela desistência dos amigos em participar, evidenciando como a situação alterava não apenas aspectos práticos, mas também as interações sociais e o lazer.
O mundo interativo, que costumava ser um refúgio para Cris, agora espelhava as dificuldades do mundo real, gerando uma sensação de isolamento e perda das atividades recreativas que antes proporcionavam diversão e descontração. A transformação negativa na dinâmica dos jogos destacava como a questão cibernética permeava diversas áreas da vida cotidiana, tanto no ambiente digital quanto no físico.
Ao fim da tarde Teresa chega em casa com algumas compras:
— A cidade estava um furdúncio danado, filho.
— Nó! Eu vi.
— D. Leopoldina que foi esperta. Está recebendo só em dinheiro e aumentando sua clientela.
— Quem é D. Leopoldina?
— Da Banca da Vaquinha, de produtos da roça, filho. Passo lá sempre, você não presta atenção. Comprei queijo, alface e mandioca hoje. Tudo em dinheiro. Há quanto tempo eu não pagava assim?
— Nó, mãe… Que isso? Comprar em dinheiro é dar dois passos pra trás. O mundo não pode ficar sem Internet.
— Exagero, Cris!
— Por favor, não compre mais assim. Não podemos incentivar o desuso da Internet.
— Você está realmente preocupado com o assunto ou com seus jogos digitais? Isso é bobagem, não vou deixar de comprar verdura para elaborar teorias de conspiração. A Internet está horrorosa.
— Deve ser algum problema momentâneo nos provedores. Em breve vai se resolver. O governo deve ter aumentado o monitoramento e a Internet não está aguentando. Não incentive isso, mãe, não compre em dinheiro. Pense nos hospitais, nas cirurgias, nos problemas de saúde que isso está gerando. Eles vão ter que dar um jeito.
Cris podia até ter razão, mas Teresa sentia que ele estava tentando manipulá-la com essa súbita preocupação com hospitais.
Teresa prosseguiu preparando o jantar, sem oferecer mais respostas. Ao longo dos anos, ela nunca abandonou o uso do dinheiro como forma de pagamento; por que mudaria isso agora?
Enquanto isso, Alessandra acabara de divulgar uma nova notícia “quente”:
Está confirmado que as cinco mortes ocorridas na capital mineira também seguiram outro padrão: as vítimas tiveram seu CPF, redes sociais, hábitos religiosos e costumes consultados via Internet, antes dos crimes. |
Os celulares de Bernardo e sua equipe no COIMG emitiram alertas de notificação do canal de Alessandra, que passou a ser monitorado automaticamente para qualquer post. Rapidamente, eles assistiram à notícia, que se desdobrou da seguinte forma:
Faz realmente sentido que o governo colete todos estas informações dos cidadãos em sua base de dados? Quando é definido o limite entre a segurança do estado e a segurança do cidadão e quando é que, além de tirar a liberdade do indivíduo, passa a também lhe deixar inseguro e exposto? Qual é o perigo que estamos enfrentando? Quais são os impactos na utilização de nossa Internet que tudo isso está causando? Está parecendo um ataque cibernético, uma invasão de hackers em nossa rede, mas pode ser somente o governo utilizando mal os recursos tecnológicos. Com Lupa na Verdade!!! |
Já era tarde, quase meia noite, e Bernardo estava sozinho na sala de pesquisas do COIMG investigando a audiência e as repercussões da postagem de Alessandra sobre a população, tanto na Internet quanto nos vários canais de telejornais. Nesse momento, ele vê o plantão de um dos telejornais interromper a programação para entrar com um link ao vivo, com uma nova notícia:
[Voz da TV]: Acabamos de receber a informação do falecimento de Fernandes Tourinho, empresário dono de uma rede de supermercados de Minas Gerais com filiais em outros cinco estados. Ainda não temos informações detalhadas mas, se o caso for de envenenamento será informado pelos órgãos governamentais? Será que seu CPF foi consultado na Internet? Afinal, o governo e a polícia tem informação sobre os CPF’s que estão sendo consultados previamente? Por que não atuam em defesa das vítimas antecipando-se aos assassinos? |
O telefone de Bernardo toca. É o Martim.
— Boa noite! Te acordei?
— Boa noite! Não, ainda estou na sala de pesquisas.
— Viu os noticiários?
— Sim, acabei de ver.
— Não irei à reunião da equipe amanhã, conduza os alinhamentos e me encontre no sábado na Praça das Águas às oito e meia.
— Boa noite, então!
— Boa noite e até sábado. Ah, use roupas esportivas, como um dia de folga normal.
— Combinado.
Bernardo ainda ficaria mais umas duas horas acordado, compilando todas as informações e preparando dados para a reunião e para o tema que passará para sua equipe resolver: por que mesmo com a implementação do protocolo de identificação de pesquisas de CPF não foi identificada a pesquisa da sexta vítima, o empresário Fernandes Tourinho?
Ainda faltava aguardar a perícia para constatar se era uma morte por envenenamento, como especulavam os telejornais. Então eram duas preocupações com esta nova morte:
- Confirmado o envenenamento, a equipe teria de lidar com o enigma de não ter descoberto a pesquisa prévia com o CPF.
- Não confirmado o envenenamento e sendo outra causa, como retirar da população e imprensa as especulações sobre o tema que poderiam passar a acontecer com todas as mortes de agora em diante?
Bernardo então ligou para a equipe de plantão do Instituto Médico Legal e pediu que, assim que o corpo chegasse, fosse agilizado o exame toxicológico, em nome do Governo do Estado e mantendo sigilo sobre o resultado.
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